quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Dos balanços e seus inumeráveis fios, uma história do Geada





Essa figura que nos persegue, como um fino e frágil fio de Ariadne: andar suspenso no fio / que tece desenredos / onde o fim é sempre recomeço / porque à minha volta  / ruge, ofegante, o labirinto[1].


           
            Colocar-me em uma posterioridade e lançar retrospectivamente o olhar sobre as aquisições do nosso Grupo: eis o que pensei quando escrevi dois textos intitulados Dos balanços e seus inumeráveis fios, uma história do Geada (I e II).
O primeiro, escrito em Dezembro de 2000, tinha, na época, o objetivo de fazer um balanço das leituras realizadas pelo Geada entre 1998-2000, derrubá-las das prateleiras[2], para tentar encontrar, na desordem em que se apresentariam, um fio qualquer a sustentar as tortuosidades a que os textos lidos nos levaram. Pensava que, assim, poderia interpretar o processo que nos envolveu na constituição do grupo, em seus encontros e desencontros.
O segundo texto, escrito no final de 2002, procura perseguir novamente nossa rota de leituras, agora já em um grupo até certo ponto consolidado.
Talvez o clima de balanço, que sempre coincide com certos finais (de um período, de um milênio), com certas partidas que exigem longos adeuses – ou com aquelas motivações secretas às quais não podemos aceder sem nos quebrarmos em cacos – acabou imprimindo um certo tom nostálgico aos textos (devo desculpar-me?) e, certamente, me turvou a vista. Entretanto, quero correr o risco, colocá-los na REDE e deixar que exibam sua imperfeição, que sejam lidos em sua parcialidade, em sua transitoriedade, em sua transversalidade – como palimpsestos (verdadeiros peixes vivos se debatendo em minha mão). Eis, pois, as prateleiras em desordem, aquilo que foi, efetivamente, escrito em outro tempo e lugar e que eu lanço na rede:

Dos balanços e seus inumeráveis
fios I: uma história do Geada (2000)


            Leitura feita por puro prazer, Ceci n´est pas une pipe[3] foi o texto inaugural do GEADA: com ele aprendemos a gostar de Foucault e de Magritte. Não foi retomado, a não ser tangencialmente quando iniciamos a discussão sobre a teoria da interpretação em Foucault, já no final do ano, na leitura do Theatrum Philosophicum[4]. A leitura de Ceci... iniciou o estranhamento diante da esfinge-Foucault. Mas ela não nos disse o clássico “decifra-me ou te devoro”. Pelo contrário, já afirmava a impossibilidade de decifração, pois o sentido sempre leva a outro sentido e a interpretação é um processo infinito (para nosso alívio e para nossa desgraça).

As leituras e discussões do GEADA, durante 2000, centralizaram-se na busca de uma teoria do discurso, de uma teoria da interpretação. Nosso foco central é FOUCAULT, mas não o Foucault (seria muita pretensão) e sim aquele Foucault que está implicitado na Análise do Discurso derivada de Pêcheux. Penso que o nosso esforço foi o de ler esse Foucault submerso na AD. Onde fomos buscá-lo: nas implicitações e silenciamentos de PÊCHEUX. E, em ambos – Foucault e Pêcheux – a recusa ao “humanismo” de Bakhtin[5]. Por isso, a teoria do discurso e da interpretação que estamos procurando parece situar-se nas confluências e divergências das propostas de PÊCHEUX-FOUCAULT-BAKHTIN. E, para nós, assim mesmo: Foucault no centro, Pêcheux à esquerda e Bakhtin à direita.
Tudo girou em torno de Foucault na Arqueologia do Saber – nossa leitura-mestre[6].

Uma leitura colateral essencial foi “(Re)ler Michel Pêcheux hoje”[7], texto em que Denise Maldidier apresenta a vida-e-obra de Pêcheux. Foi esse texto que nos deu uma idéia da trajetória de Pêcheux, seus entrelaçamentos com aquilo que acontecia no contexto francês do final dos anos 60[8], o enredamento entre sua vida e sua obra, as fraturas do seu pensamento, o inacabado da sua trágica desaparição (e fomos montando algumas peças e fiando um tecido de alguém que ele deve ter sido[9]).

Por isso, penso que foi importante termos lido o “Remontemo-nos de Foucault a Spinoza”, texto de Pêcheux-anos 70[10], que explicita sua recusa (um pouco teórica, um pouco ideológica) às propostas da Arqueologia[11]. E termos lido “Lecture et mémoire: project de recherche”[12], para encontrar Pêcheux aceitando explicitamente as teses da Arqueologia, no início dos anos 80 (e, até, citando Bakhtin!). E, tudo foi buscado através (de través) de Foucault na Arqueologia do Saber – nossa entreleitura-mestre.

Como entreleitura-mestre, a Arqueologia do Saber nos levou a várias direções: à ordem do discurso, ao conceito de função-autoria, à concepção de descontinuidade da História[13].  A reflexão sobre a concepção de “História”, motivo de grandes embates entre os marxistas - como Althusser e Pêcheux - e Foucault (marxista ma non troppo...) ainda está embrionária no GEADA. É um tema que precisamos verticalizar nas discussões futuras[14]. Ligado a essa questão da “História”, o tema da “morte do Homem” – outro centro de grandes polêmicas em torno de Foucault - também resta a ser aprofundado[15].
            E, óbvio, conceito central da Arqueologia, transferido por Pêcheux para a AD, foi o de formação discursiva. Foi preciso pensá-la em Foucault[16] e em Pêcheux[17]. A distingui-los, toda uma série de conceitos de base marxista (“ideologia”, “classe” etc.). A distingui-los, toda uma história da AD, de apropriações, paráfrases, deslocamentos e, principalmente, vulgarizações, na medida em que o conceito circula desenfreadamente numa vulgata da AD francesa que é feita atualmente no Brasil[18]. Penso que essa discussão norteou a maioria de nossos encontros: procurando reinserir o conceito de formação discursiva, tivemos de encarar os espectros (de Marx, de Saussure, de Freud, de Lacan)[19] como vestígios que se grudam na produção-e-circulação dos conceitos teóricos postos em evidência por Foucault e Pêcheux.
           
Há, me parece, um aspecto que ficou colateral em nossas leituras. Trata-se da reflexão sobre a literatura, cuja discussão ensaiamos através do texto de Foucault  “Linguagem e literatura”[20]. Certas idéias propostas nesse texto – às quais não retornamos – ficaram fragmentariamente separadas do corpo que auscultávamos. Por exemplo, ficaram na epiderme as afirmações foucaultianas de que a literatura é uma invenção recente, pois data do século XIX, momento em que ela toma consciência de si como transgressão da essência pura e inacessível da literatura. Do mesmo modo, ficou por analisar a afirmação de que a literatura não é exatamente nem a linguagem, nem a obra; é, de certo modo, o vértice de um triângulo por onde passa a relação da linguagem com a obra e da obra com a linguagem. Penso que esses órgãos não decifrados podem ser re-visitados com a leitura de As palavras e as Coisas.
Penso, também, que a colateralidade da reflexão sobre a literatura é uma deriva da natureza do grupo, isto é, das suas preocupações mais urgentes. Um forquilhamento? A literatura nos assombrou o tempo todo, com seus mil demônios. Talvez não tenhamos conseguido incorporá-la ou exorcizá-la. Afinal, não foi ela que esteve nos assustando, na leitura do Theatrum Philosophicum[21] de Foucault, em busca de uma teoria da interpretação em torno de Nietzsche, Freud e Marx? Mais uma vez, o Theatrum nos mostrou que havia chegado a hora  de nos defrontarmos com a leitura de As palavras e as coisas[22].

Os encontros – e desencontros - do GEADA (momentos em que à complexidade somaram-se a raridade, a felicidade, a mais pura edificação do pensamento científico) nos ensinaram, acima de tudo, uma atitude diante do saber (e do seu correlato, o poder): o profundo respeito pelas epistemes (sabendo-as provisórias), o profundo respeito pela história do Homem (exatamente por sabermo-nos um acidente na trajetória do discurso).
Creio que cada um de nós acrescentou muito à sua vida nos encontros do GEADA. Aumentaram as dúvidas, porque não há uma verdade (só vontades de verdade). Cresceu o medo, porque é mesmo arriscado entrar na ordem do discurso. Tornamo-nos, todos, foucault loveslavers, porque é impossível não nos apaixonarmos por quem tomou justamente o escondido, o oculto, o degredado, o excluído, o apartado, o lado sombrio e, ao mesmo tempo, falou sempre do matinal, da aurora, das luzes (enlightment), da memória.  Em alguns momentos, pensamos ter Foucault nos estendido o fio de Ariadne? Na maior parte do tempo, andamos suspensos no fio.
Sabemos, lendo Foucault, que do outro lado do fio reencontraremos, sempre, o labirinto que ruge, ofegante.

Voltando ao início: o nome do grupo – GEADA – foi proposta da minha orientanda Regina Baracuhy. Estávamos pensando em um nome para o grupo. Estava difícil encontrar o nome próprio, a marca da constituição da autoria. Baracuhy teve um sonho e, nele, o nome do grupo era GEADA.
Vera coincidência, o GEADA nasceu de um sonho.


Maria do Rosario Gregolin
Araraquara, fevereiro de 2001







[1] Anotação que eu fiz em uma página do meu exemplar do livro A Arqueologia do Saber (Foucault).
[2] À moda dos estabelecimentos comerciais – como meu pai fazia quando eu era criança? Lembro-me que a sua loja de calçados era, literalmente, desconstruída durante o feriado do final de ano: eu ficava olhando aquelas caixas coloridas, deslocadas das prateleiras onde jaziam em uma ordem rigorosa durante o ano todo, espalhadas pela loja... Derrubava-se a ordem implacável das prateleiras, suspendendo, momentaneamente, a lógica que as regia. Essa cena da desordem ficou fixada em minha memória, como um encrave. Já a ordem a que – logo depois do balanço - as caixas teriam que se sujeitar, dela não me ficou qualquer lembrança.
[3] Foucault, M. “Ceci n´est pas une pipe”. Em: Cahiers du chemin, n. 2, janeiro 1968 ( republicado pela Fata Morgana, com as cartas de Magritte a Foucault).
[4] Foucault, M. Theatrum Philosoficum. São Paulo: Princípio, 1987.
[5] E penso que Bakhtin é uma daquelas “urgências teóricas” , uma onipresença pela ausência. Não é esse o conceito do homem moderno para Foucault? .
[6] Foucault, M. A arqueologia do saber. Trad. Luis Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986.
[7] Esse texto é a apresentação do livro L´inquietude du discours. Paris: Ed. des Cendres, 1990. Nesse livro, D. Maldidier publica uma seleção de textos de Michel Pêcheux. Em primeira pessoa, nessa introdução, Maldidier (que viria a falecer tragicamente em 1992), participante do grupo de Pêcheux, vai narrando o percurso de M.Pêcheux e fazendo considerações e avaliações. A tradução desse texto foi feita por mim e deveria ser retomada e aperfeiçoada (quando teremos tempo?).
[8] E, claro, a consulta deliciosa aos dois volumes de Dosse, F. A História do Estruturalismo (1. O campo do signo; 2. O canto do cisne. Campinas: Unicamp/Ensaio, 1993).
[9] Nem uma fotografia: é um Pêcheux incorpóreo, ao contrário da super-corporalidade de Foucault nas inúmeras poses que recolhemos.
[10] Em: Maldidier, D. L´inquiétude du discours. Paris: Cendres, 1990. Tradução minha.
[11] E, junto, a leitura de D. Lecourt (A arqueologia e o saber. Em: Rouanet, S. e outros. O homem e o discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971). Essa crítica de Lecourt foi a fonte na qual Pêcheux bebeu sua crítica ao “marxismo paralelo” de Foucault.
[12] Em: Maldidier, D. L´inquiétude du discours. Paris: Cendres, 1990. Trata-se de um projeto que foi recusado pelo CNRS e ficou inédito até a coletânea de Maldidier. A tradução desse texto também é minha, e está esperando refinamento.
[13] E, então, a leitura de Foucault, M. A ordem do discurso (São Paulo: Loyola, 1996); de Foucault, M. O que é um autor? (Porto: Vega Passagens, 1990), de Rouanet, S. e Merquior. Entrevista com Michel Foucault (Em: O homem e o discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971).
[14] Penso que estão à nossa espera  textos de De Certeau, de Le Goff, de P. Nora, etc. Alguns leram o excelente texto de P. Veyne, “Foucault revoluciona a História” (em: Como se escreve a História. Brasília: UNB, 1997). Há, além disso, uma publicação sobre a “história do presente” ( Institut d´Histoire du Temps Présent. Écrire l´histoire du temps présent. Paris: CNRS Éditions, 1993) que vale a pena colocar em nossos horizontes (assim mesmo, no plural, que é assim que nós os percebemos...).
[15] Lemos Rouanet, P.S. A gramática do homicídio (Em: O homem e o discurso), mas precisa ser retomada, reinserida nas reflexões sobre a ordem do discurso e o conceito de função-autor. Isso será pensado, em 2001, em torno da leitura de Foucault, M. As palavras e as coisas.
[16] “No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de objetividade’.” (Foucault, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986, p. 43).
[17] “Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa dada conjuntura, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e se deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.).” Em: Haroche C., Henry, P & Pêcheux, M. La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. Em: Langages, 24, 1971, p. 93-106.
[18] E essa “história da AD francesa no Brasil” freqüentou muito as nossas discussões, foi muito produtiva para pensarmos na fragmentação, nos equívocos atuais. Quando nos referimos a uma vulgata, pensamos numa segunda ou terceira geração de “analistas do discurso” no Brasil, determinados pela forma como a teoria derivada de Pêcheux vem circulando nos meios universitários brasileiros, desde o início dos anos 80.
[19] Bem que tentamos ler Lacan (“O estádio do espelho como formador da função do Eu”. Em: Zizek, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996), mas ainda não era a hora de enfrentar esse enigma espectral. Chegamos à conclusão de que, descontando-se aquilo que é pura resistência teórico-ideológica, Lacan é indecifrável para nós, pobres seres alter-ego-ideologizados assombrados pelos vários fantasmas de Marx (seus seguidores, seus simpatizantes, seus detratores).
[20] Foucault, M.  Linguagem e literatura. Em: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. O texto, inédito, é uma conferência proferida  por Foucault em Bruxelas, em março de 1964.
[21] Foucault, M. “Nietzsche, Freud, Marx”. Em Theatrum Philosophicum. São Paulo: Princípio, 1987.
[22] “Que estranha maneira é essa, de ler Foucault, todo o tempo sinalizando para uma leitura, transgredindo a cronologia estabelecida por Foucault-ele-mesmo?” - o profeta das descontinuidades nos aterroriza e nos provoca, com sua risada cristalina.
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